Chamada de "Diva", a obra tem seis metros de profundidade e 16 de largura e fica na Usina de Arte de Água Preta, na Zona da Mata de Pernambuco.
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| Obra 'Diva' foi instalada em montanha em Água Preta, na Zona da Mata Norte de Pernambuco — Foto: Reprodução/TV Globo |
"A
vulva, ao longo da história ocidental, sempre foi um tabu. Sempre foi proibido,
mutilado, as mulheres em alguns países têm o clítoris arrancado, enquanto, nos
chafarizes, há água saindo de pênis esculpidos. É um medo absurdo, porque é um
lugar que todo mundo passa, a gente nasce por ela. É por ali que todo ser vivo
passa. Mas desperta um medo primitivo, uma repulsa. O medo vem da potência da
mulher, a capacidade de gerar e de sangrar todo mês".
A fala
é da artista visual pernambucana Juliana Notari, autora de "Diva",
como foi intitulada a escultura de 33 metros de altura em formato de vulva e de
ferida instalada no alto de uma montanha em Água Preta, a cerca de 130 quilômetros do Recife. O monumento, que tem seis metros de
profundidade e 16 de largura, levou 11 meses para ficar pronta e gerou polêmica
internacionalmente.
"Diva"
foi construída em concreto armado e resina e pintada de vermelho, como
resultado de uma residência artística do Museu de Arte Moderna Aloisio
Magalhães (Mamam) na Usina de Arte de Água Preta. O local, até 1998, era a
Usina Santa Terezinha e moía cana para produzir açúcar e álcool, uma das mais
tradicionais monoculturas de Pernambuco. Cinco anos atrás tornou-se uma espécie
de grande museu de arte contemporânea a céu aberto.
Devido à magnitude da
obra, foi preciso contratar um engenheiro e uma equipe de construção civil para
pôr em prática o projeto. Para conceber a obra, Notari passou meses na usina,
conhecendo a região e convivendo com os moradores da Mata Norte.
O resultado
foi a ideia de criar uma escultura em formato de vulva e de ferida, que abrisse
possibilidades de discutir problemas estruturais e históricos do Brasil, de
Pernambuco e, até mesmo, da Zona da Mata pernambucana.
"'Diva' é muito mais ferida que vulva. Como essa já é uma
imagem que eu trabalho há um tempo, tive a ideia de colocar naquela grande
ferida histórica, geográfica e social do local, que passa desde a escravidão à
monocultura da cana. São muitas feridas. Isso abriu uma caixa de Pandora de
discussões sobre gênero, classe social e raça. São feridas que o Brasil não
curou", disse Notari.
A Usina de Arte surgiu da ideia dos donos de plantar arte em vez
de moer cana. Segundo Bruna Pessoa de Queiroz, presidente do local, a ideia foi
de espalhar cultura, beleza e reflexão na Zona da Mata. Assim, o Mamam indica
artistas para fazer residências na usina e desenvolver obras no local.
"A gente acredita na arte, na educação como um poder
transformador. Então, a partir da Usina de Arte, a gente vem desenvolvendo
essas ações educativas e, com esse parque, gera um fluxo de turistas que faz a economia
da vila girar. O grande foco é manter a vila viva e vibrante", declarou
Bruna.
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| A escultura 'Diva' foi feita em concreto armado e resina e, durante parte do dia, reflete tons prateados do céu — Foto: Reprodução/TV Globo |
Juliana
Notari cresceu vendo a arte sendo feita em casa. O avô, Luiz Notari, foi
assistente de Candido Portinari, um dos mais importantes artistas plásticos
brasileiros. O pai, João Roberto "Peixe" do Nascimento, é designer e
ex-preso político torturado na ditadura militar de 1964. "Venho de um
ambiente de arte, então, desde pequena, eu sabia que era artista", disse.
O trabalho que, segundo ela, foi o primeiro marco de sua
trajetória artística foi "Verstehen", em que 30 jabutis passearam em
meio a bolas de cabelo humano. "Foi bastante polêmico, passei mais de seis
meses juntando cabelo de todos os salões de cabeleireiro do Recife. Eu queria
associar o cabelo às pulsões, porque ele é essa coisa que a gente tenta evitar,
como algo que lembra a animalidade, mas que tem a força de sempre estar
voltando", afirmou.
A ideia da vulva-ferida surgiu quando, no Recife, a artista
encontrou à venda diversos espéculos de aço. Esses equipamentos são usados por
médicos para dilatar e examinar cavidades em pacientes, como na vagina, para
enxergar o colo do útero. Os instrumentos tinham gravados em si o nome da
pessoa a quem pertenceram, a "Dra. Diva".
Esses equipamentos passaram a ser utilizados por Notari em
fendas abertas em diferentes locais, em formato de vulva e, por vezes, cobertos
de sangue de boi. Numa delas, ela abriu um buraco na raiz de uma Samaúma,
árvore ancestral que distribui água para outras plantas na floresta. O sangue,
dessa vez, foi da menstruação dela mesma, que o coletou durante nove meses.
Dentro da fenda ela inseriu um relicário passado ao longo de gerações entre as
mulheres da família dela e uma semente.

Tabloide britânico Daily Mail censurou imagem da escultura em formato de vulva instalada em Pernambuco — Foto: Reprodução
"'Diva' no final das contas é uma grande escultura feita à
mão. Como demonstrou Roberto, o engenheiro arretado responsável pela obra (e
que bota a mão na massa!), não era possível usar escavadeira, porque ela não
permitiria esculpir com precisão os relevos que precisava. Por isso, foram mais
de 40 mãos para fazer 'Diva' nascer, mais de vinte homens trabalhando num
esforço hercúleo embaixo do sol a pino, em meio a muita música e piada",
disse, na publicação.
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| Mais de 40 pessoas participaram da construção da escultura 'Diva' — Foto: Acervo pessoal |
Na
publicação feita por Notari, havia selfies da artista com a obra
recém-finalizada e, também, o processo de produção, com os pedreiros que
escavaram a terra e encimentaram a estrutura para dar forma a Diva. Algumas das
críticas foram sobre o fato de os trabalhadores serem negros e não terem sido
creditados na publicação da artista.
Houve, ainda, quem se incomodasse com a mera existência da
escultura de vulva a céu aberto. Foram publicados ataques machistas contra a
artista e a obra, com piadas e palavrões. Foi aí, então, que "Diva"
tomou proporções internacionais, na imprensa de diversos países.
O tabloide britânico Daily Mail, por exemplo, publicou uma
reportagem sobre o caso com a imagem da escultura pixelada. Outros sites, como
o também britânico The Guardian e os das emissoras estadunidenses CNN e NBC
publicaram a história, citando a polêmica gerada pelo público mais conservador.
Nas redes sociais, a escultura dividiu opiniões. No Twitter, a
usuária @iaralice48 chamou a obra de "hipocrisia feminista".
"23h59: ñ precisamos de homens, somos independentes e podemos fazer tudo!
00h00: vamos fazer uma obra de arte revolucionária 100% feminista q vai
precisar de 15 homens! Conheça essa linda obra de arte feita c/ dinheiro
público, artista @JulianaNotari", disse o perfil.
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| Tweet critica obra Diva, de Juliana Notari — Foto: Reprodução/Twitter |
"Teve
várias etapas da polêmica. No começo, minha 'bolha' elogiou. Depois, chegaram
ataques da direita conservadora, os 'robominions', e críticas da esquerda.
Essas últimas foram construtivas, elevaram o debate e qualificaram a discussão.
Mulheres trans entraram com muitas críticas e pessoas falaram sobre os
trabalhadores serem homens negros e eu, uma mulher branca. Depois, ainda veio o
ataque midiático, e qual artista não quer tanta mídia? Mas tem sido muito
intenso", disse Notari.
Para a professora visitante da Universidade de Copenhague, na
Dinamarca, Laura Erber, especialista em história e teoria da arte, o incômodo
com a obra parte não do fato de "Diva" representar um órgão sexual,
mas, sim, por ser esse órgão feminino.
"Numa sociedade repleta de monumentos fálicos de todos os
tipos e materiais, realmente é espantoso o incômodo causado por um monumento em
forma de vagina. Ou seja, o problema não é o caráter sexual da instalação, mas
o sexo específico aí representado", declarou.
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| Juliana Notari ao lado da escultura 'Diva' — Foto: Reprodução/TV Globo |
Erber
afirma, inclusive, que o momento pelo qual o Brasil passa ajuda a inflamar o
incômodo com a obra, mas essa relação controversa é antiga.
"A repulsa à vagina, à menstruação e ao prazer feminino é
um fenômeno antigo e persistente. Tradicionalmente, na história da arte, a
mulher é a musa, seu corpo nu era aceito na medida em que era sublimado e
purificado da sua corporeidade real e do seu desejo próprio", disse.
A proporção da polêmica foi tão grande que o caminho que dá para
a escultura foi bloqueado pela usina, para evitar acidentes e problemas, já que
o terreno é bastante íngreme. No entanto, a contemplação é liberada e pode ser
feita de longe, dadas as proporções em que "Diva" foi esculpida.
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| Performance 'Dra. Diva' foi feita por Juliana Notari com sangue de boi — Foto: Acervo pessoal |
As obras de
Juliana Notari são marcadas pela relação com o feminino em meio à violência
que, para ela, a mulher é submetida desde o momento do nascimento. Foi a partir
do incômodo sentido por ela na própria figura do espéculo, criado por um
americano para fazer experimentos em escravas negras, que nasceu a "Dra.
Diva".
"A mulher já nasce tendo que ser recatada e do lar, não
pode se conhecer, se tocar, é um corpo vigiado, domesticado e para ser servil à
sociedade. Desde a procriação usurpada das mulheres. As mulheres que usavam
ervas, eram parteiras, foram para a fogueira porque tinham autonomia sobre
si", disse.
"Diva", a escultura da usina, vem como continuidade de
todas as performances envolvendo a vulva ferida. Sem o violento e frio
espéculo, sobra a vulva, ferida, inflamada.
"Quando eu tiro o espéculo abro a violência não só para com
a mulher, mas para com a terra, estuprada ao longo da colonização, pelo
extrativismo. "Diva" tem uma proporção monumental, é uma coisa forte
e abre o campo para muitas coisas, inclusive o falocentrismo, que gosta de tudo
grande. Essa dimensão passa por ela. A proporção da escultura é a terra, é a
montanha. Eu precisava fazer uma ferida tão grande que desse conta da história
daquele lugar, porque, afinal, é uma usina que tem sua história", declarou.






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