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conto
UM DIA DEPOIS DO OUTRO
Sentiu que estava
sendo observada. Não era uma simples impressão. Tinha certeza que era
acompanhada pelos olhos de alguém. Descia a calçada que dava acesso à entrada
da Universidade. Estava suando e tremia um pouco. Ainda não estava
completamente restabelecida. Desde a cirurgia, passaram-se apenas seis meses.
Ainda não podia acreditar que tinha conseguido fazer o transplante de medula
óssea. Estivera por quatro anos na fila de transplantes, entre a vida e morte,
esperando ansiosamente por um doador compatível, até que finalmente, recebera o
telefonema do hospital e a cirurgia pudera então acontecer. Lembrou a agonia de
seus pais. Filha única de uma família abastada e rica, tinha sido diagnosticada
com câncer há cinco anos. O tratamento feito inicialmente no Brasil e depois no
exterior, não surtira o efeito desejado. E a doença alastrou-se ao ponto de
obrigá-la a praticamente viver no hospital entre tubos e monitores. Só um
milagre poderia salvá-la. A família fizera uma campanha ferrenha para conseguir
um doador: nas repartições públicas, universidades, na internet... Todos os
esforços foram em vão. Ninguém era compatível. Ela não tinha irmãos. O que
dificultou ainda mais a busca por um doador. Quando todas as esperanças já
desvaneciam, receberam a ligação do hospital. O seu milagre chegara! Tinha um
doador compatível! A cirurgia acontecera sem problemas. Tudo ocorrera da melhor
maneira possível e agora todos poderiam retomar as suas vidas. Ainda estava
ocupando a mente com tais pensamentos, quando escorregou no degrau da escada e
teria caído, se braços fortes não a tivessem segurado. Ergueu a vista e
deparou-se com um par de olhos castanhos serenos lhe observando com simpatia.
Era um rapaz negro, de feições agradáveis e muito bonito, que lhe perguntou
numa tom gentil: - Você está bem? - Sim. Estava distraída e quase caí. Obrigada
por me segurar. - Não foi nada. Você pesa muito pouco. Está fazendo regime? -
Não - Respondeu divertida. - Apenas perdi peso, mas já o estou recuperando. Percebeu
que ele a olhava fixamente. Sentindo-se incomodada, desviou os olhos. Ele ainda
a segurava e ela pôde sentir seu aroma sutil e masculino. - Preciso ir, disse
com a voz estranhamente rouca. Ele a soltou de imediato, perguntando-lhe: -
Posso convidá-la para jantar? - Não posso aceitar. Desculpe. Talvez outro dia.
Ele simplesmente acenou com a cabeça, e afastou-se, deixando-a olhando para ele
enquanto andava em direção ao outro lado do campus da Universidade. Será que
era ele quem a estava observando? Indagou-se. Se era, por que o fazia? Confusa,
afastou-se em direção ao seu carro estacionado logo ali. Chegando em casa,
jogou a bolsa e os livros em cima da mesinha do quarto. Dirigiu todo o percurso
pensando no estranho de olhos escuros que a olhara tão intensamente. Ele era
alto, ligeiramente musculoso, cabelo escuro e crespo, e cortado muito curto,
rente à sua bem formada cabeça. Vestia calça jeans desgastada, camisa branca
com as mangas enroladas na altura dos antebraços e tênis velhos. Nunca o tinha visto
na Universidade. Ela já estava no último ano do curso de Direito, prestes a se
formar. Seria uma advogada renomada, como seus pais, que possuíam o maior e
mais conceituado escritório de advocacia da cidade, com uma vasta clientela
entre as principais empresas comerciais e industriais da região. Atrasara o
curso em dois anos por causa da doença, e só agora aos vinte e quatro anos é
que estava terminando o curso numa das maiores universidades do país. Passadas
duas semanas, estava no refeitório quando ele entrou, acompanhado de uma garota
também negra e muito bonita. De imediato não a viu. Só quando dirigiu-se ao
balcão para pegar o lanche é que a avistou. Sorrindo, dirigiu-se à mesa onde
ela estava sentada. - Oi - disse-lhe amigavelmente, mostrando uma fileira de
dentes muito brancos quando sorriu. - Oi - Respondeu ela. Você estuda aqui?
Perguntou-lhe. - Sim. Estou no último período do curso de Engenharia Civil. -
Nunca o vi na Universidade. - Creio que é porque faço o curso à noite. Sou
bolsista. - Ah, entendi. Eu estudo pela manhã. Curso Direito. Último ano.
Percebeu que a moça que o acompanhava os olhava com grande interesse. - Sua
namorada está olhando pra cá. Deve estar te esperando. - Disse ela. - Não é
minha namorada. É minha colega de sala. Estamos desenvolvendo juntos um projeto
final para conclusão do curso. Por isso estamos aqui agora de manhã. - Sei. Bom
trabalho, então. - O meu convite ainda está de pé. Aceita sair comigo? - Mas eu
nem sei o seu nome! Esta já é a segunda vez que conversamos e nem nos
apresentamos! - É mesmo! Disse sorrindo, enquanto estendia mão. - Eu sou
Miguel. E você é ... - Themis. - Themis? Ela não é ... - A deusa grega da
justiça, guardiã dos juramentos dos homens e da lei. Eu sei. Meus pais são
advogados. Acharam apropriado para o futuro que planejaram para mim. Pelo menos
foi isso que me disseram - afirmou com um sorriso irônico. - Sua amiga parece
impaciente. Falou enquanto observava a moça tamborilar os dedos na mesa.
Parecia que ele estava totalmente esquecido da colega de classe. Olhou para
ela, em seguida voltou-se para Themis e disse: - Já nos apresentamos. Agora
aceita meu convite? - Não sei - disse indecisa. - Estou convalescendo de uma
cirurgia. Não posso ficar exposta a ambientes fechados. Preciso dormir cedo. Ainda
tomo remédios com hora marcada. E tenho que seguir uma dieta balanceada para
recuperar os quilos que perdi. - Bem, sendo assim, podemos passear na praia, ao
ar livre, pedir água de côco pra você tomar o seu remédio e depois comermos um
sanduíche natural. Que lhe parece? - Parece ótimo. Amo o mar, a brisa marinha.
Convite aceito. Obrigada. - Domingo pela manhã? Às dez horas? - Sim. Onde nos
encontramos? - Te pego em sua casa, certo? Dê-me o endereço. Disse-lhe onde
morava. Em seguida despediram-se com um beijo no rosto. No dia marcado, Miguel
estacionou o carro de seu pai na frente do prédio. Desceu do veículo, pediu ao
porteiro que a chamasse, e ficou aguardando em frente ao portão. O porteiro o
olhava com curiosidade. Certamente se perguntava o que um sujeito negro e
aparentemente sem um tostão queria com a moça mais rica do prédio, filha de
seus mais ilustres moradores. Sabia, por experiência própria, que os pais da
menina eram extremamente racistas e preconceituosos. Para sua surpresa, a jovem
desceu, e cumprimentando o recém chegado, acompanhou-lhe, entrando no seu carro
popular que já tivera dias melhores. Em instantes o telefone da portaria tocou,
e ao atender deparou-se com a voz do Dr. Aragão querendo saber com quem saiu a
sua filha. Não parecia feliz. Parecia aborrecidíssimo. Miguel e Themis voltaram
pelas cinco horas da tarde. Alegres e tagarelantes, estavam de mãos dadas,
enquanto se aproximavam da portaria. Despediram-se com um breve beijo no rosto,
e a moça entrou no prédio, não sem antes olhar pra trás para observar o rapaz
até que este sumiu de sua visão. Suspirou e entrou. Depois daquele dia, muitas
foram as vezes que Themis e Miguel saíram. E quase todos os domingos a cena se
repetia: ele ia buscá-la pela manhã e só regressavam de tardezinha,
aparentemente felizes e enamorados. Um dia no entanto, a moça desceu chorando e
se jogou nos braços do rapaz, que a abraçou, acariciando seus loiros cabelos.
Seus olhos verdes estavam inchados pelo pranto. Miguel se assustou. Nunca a
tinha visto desse jeito. - O que foi, minha linda? Perguntou-lhe o rapaz. Já
estavam distantes, mas o porteiro ainda conseguiu ouvir a resposta da moça: -
Meus pais não aceitam o nosso namoro. Exigiu que acabássemos tudo hoje. Não
aceitam um não como resposta. E eu não quero desistir de você, não quero
desistir de nós. Disse que você seria o meu par na formatura, e eles
simplesmente rejeitaram a ideia. Ameaçaram me deserdar, não pagar mais meu
curso, cancelar a formatura. - O que mais eles disseram, Themis? Não me esconda
nada, por favor. - Disseram que jamais aceitariam sangue negro na família. Que
não tolerariam um João Ninguém casando com a filha deles. Eu disse que nos
amávamos e que iríamos nos casar assim que nos formássemos. Eles disseram que
você era um interesseiro. O rapaz consolava a moça. Entendia preocupação dos
pais dela. Não o conheciam. E por não saber quem ele era, supunham que era
inadequado para a sua filha. Ele vinha de uma família pobre. Seu pai era
funcionário público, sua mãe, trabalhava no comércio. Era bolsista na
Universidade, assim como seu irmão mais novo. Não tinham recursos financeiros,
e ainda por cima todos eram negros. Difícil para uma família branca e
aristocrática aceitar. Um dia, foi procurado no trabalho, por um casal elegante
e bem vestido. Na hora reconheceu os pais de Themis. Estes não tinham uma
feição amistosa. Pelo contrário, sem preâmbulos foram logo perguntando: -
Quanto você quer para deixar em paz a nossa filha? Diga seu preço e pagaremos.
Miguel ficou tão estupefato, que sequer respondeu. Dando-lhes as costas,
dirigiu-se à saída da loja onde trabalhava, pois estava atrasado para um
encontro. Iria à clínica onde fizera a doação de medula óssea que salvara uma
vida. A família da paciente fazia questão de conhecê-lo, para agradecer pessoalmente.
Não queria ir, sabia o que o esperava. Chegando à clínica, percebeu que já o
estavam aguardando. Anunciada sua chegada, foi conduzido à sala onde era
esperado. Lídia e Eduardo Aragão estavam em pé, esperando ansiosos para
conhecer a pessoa que salvara vida de sua filha. Tinham uma dívida impagável
com essa pessoa, e mal podiam esperar para conhecê-la. Ouvindo o barulho da
porta que abria, ficaram estarrecidos, pois seguindo o médico que operara a sua
filha, estava Miguel, o jovem negro que haviam tão ferozmente atacado há poucas
horas! O rapaz estava sereno, sua fisionomia tranquila. - Você doou a medula
para Themis? Perguntou Lídia, branca como um papel. - Sim. - Respondeu Miguel.
Eu vi a campanha na Universidade, pedindo doação de medula para ela. Vim a este
centro, fiz a doação. Quando ela ficou curada, fiz questão de conhecê-la. A
observava na faculdade. Acompanhei sua recuperação. Nunca disse a ela. Nos
conhecemos. Nos apaixonamos. E quero lhes dizer que casarei com ela. Sou negro,
pobre, venho de uma família humilde, mas honrada e trabalhadora. Não quero o
seu dinheiro, suas posses, seus bens. Meu único interesse é Themis e a
felicidade que viveremos quando nos casarmos. E se vocês quiserem fazer parte
de nossas vidas, conhecerem os filhos que teremos, brancos ou negros, serão
aceitos. Se não o fizerem, que sejam consolados pela fortuna que possuem, pelos
amigos interesseiros, carros, viagens e jóias, sem jamais receberem o afeto de
seus netos, brincar de vovô com eles, empinar pipas, comer pipocas no cinema...
No sangue de sua filha corre o meu sangue negro, as minhas células, a minha
vida, que doei para ela muito antes de a conhecer. Eu a amo mais que tudo e não
desistirei dela. E vocês?
(Márcia Marina)
Da redação/Sandra Silva
Postado por San Produções & Eventos
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